
Professores são inventores
Os professores sabem que aprendemos quando criamos e refletimos sobre nossas criações. Compartilhar esse momento do nascimento do conhecimento traz a cumplicidade, que deve ser própria das relações na escola.
Por César Callegari em ago 06, 2020
Bons professores são inventores. Eles sabem que aprendemos quando criamos e refletimos sobre nossas criações. Imaginam situações que provoquem seus alunos a vivenciarem o processo criativo. E costumam inventar estratégias que provocam a descoberta até mesmo das teorias e conceitos mais estabelecidos, de forma que sejam inaugurais a cada vez que são apresentados.
Essa descoberta renovada para o professor é o processo de criação original para o estudante. Compartilhar esse momento do nascimento do conhecimento traz a cumplicidade, que deve ser própria das relações na escola. É essa cumplicidade questionante em face ao desconhecido e ao imponderável que faz da aprendizagem por projetos uma das metodologias mais interessantes e mobilizadoras em uso nos dias atuais. Na aprendizagem por projetos realiza-se a descoberta fundamental de que o mais importante é desenvolver uma abordagem investigativa que, em diálogo com o entendimento conceitual, é capaz de produzir boas perguntas, as quais revelam interesse genuíno em conhecer. Contudo, esse não é um processo simples ou espontâneo: para produzir esse encantamento, professores precisam planejar, provocar e acompanhar; dar diretrizes e fornecer insumos. Informações são insumos, assim como conceitos e teorias também o são. Como articulá-los e dar sentido a eles?
Trabalhar com projetos não é coisa trivial. Fazer educação nos tempos de hoje exige muito mais do que transmitir e armazenar informações. Os novos tempos cobram dos professores a capacidade de imaginar e desenvolver propostas curriculares que superem a costumeira fragmentação disciplinar e avancem para uma visão articulada, interdisciplinar e transdisciplinar. É preciso propor conexões aos estudantes e experimentá-las criativamente em contextos os mais variados.
Uma das dez competências gerais da educação básica estabelecidas pela nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) trata justamente sobre isso. A BNCC dispõe que, a partir da educação escolar, todo estudante tem o direito de saber “exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas”. Para isso, a Base traz um conjunto de referenciais expressos na forma de competências e habilidades essenciais que todo estudante brasileiro tem o direito de desenvolver. Esses referenciais constituem uma espécie de celeiro de possibilidades destinadas a alimentar o processo crítico e criativo das escolas, seus professores e seus estudantes. São eles que, no exercício de sua autonomia, examinarão a matéria-prima contida na BNCC e fazer as escolhas que resultarão no currículo, nas diferentes propostas pedagógicas, nos diversos planos de aula, nas pesquisas e nos projetos experimentais. Dessa maneira, a norma nacional que instituiu a Base procura assegurar aos professores e seus estudantes a prerrogativa da criação autoral.
Fazer educação nos tempos de hoje exige muto mais do que transmitir e armazenar informações.
Esse cuidado é tão importante que, ao aprovar a BNCC, o Conselho Nacional de Educação fez questão de enfatizar que a Base não é currículo; não é currículo único, tampouco currículo mínimo. Em todo o texto da BNCC está claro que a forma de organização ali apresentada é apenas de um arranjo possível, entre outros que as escolas e redes de escolas poderão elaborar. Os conteúdos e habilidades que o documento da Base relaciona com as diferentes áreas e componentes, ano a ano, para todo o ensino fundamental, constituem um conjunto de insumos, uma espécie de inspiração para a elaboração e implementação de diferentes concepções curriculares. Portanto, ao tomar a BNCC como referência, educadores não devem se sujeitar a qualquer forma de alinhamento automático e acrítico. Nem se submeter a tarefas de simples adaptação ou pobres práticas de “copia e cola”. Reduzir a Base a um currículo significaria eliminar toda a rica diversidade, tão importante para uma educação que queremos plural, comprometida com os valores da democracia, da justiça social e do desenvolvimento sustentável. Significaria, ainda, eliminar a atuação inventiva dos professores, sem a qual não há possibilidade de descoberta compartilhada ou de construção inaugural de conhecimento. A BNCC é um referencial, não uma receita. Desta maneira, uma educação baseada em projetos experimentais deve levar a Base em consideração, mas reinventá-la a cada momento.
Na área de ciências da natureza, incluindo aí os domínios da matemática, esse tipo de visão é essencial. A BNCC sugere a superação das concepções arcaicas de um experimentalismo sem teoria que pode resultar num fazer sem pensar, num ativismo meramente instrumental e desprovido de significado. E indica que o ensino não se limite a conceitos e fórmulas abstratos, buscando sempre conexões com as possibilidades de intervenção na realidade do mundo físico e social. Além disso, ao sugerir campos temáticos de experiência (“Terra e Universo”, “Matéria e Energia”, por exemplo), a Base enfatiza a importância de uma abordagem interdisciplinar do ensino e da aprendizagem. Esse é o espírito que deve permear uma educação baseada em projetos que tenha como referência a Base Nacional Comum Curricular.
Artigo originalmente publicado na edição 2018 da Revista do Prêmio Shell de Educação Científica.